Como criar uma sociedade mais inclusiva?
Desenvolvendo a autonomia e a autoestima das pessoas com deficiência, a sociedade pode derrubar preconceitos e valorizar a inclusão.
Em 28 de agosto é comemorado o Dia da Pessoa com Deficiência Intelectual. Para celebrar a data, o Bayer Jovens entrevistou Alex Duarte, educador social e diretor de cinema que desenvolve várias iniciativas para promover a inclusão de pessoas com síndrome de Down. Entre as novidades, será realizado o congresso Genética Não é Destino, em 29 e 30 de agosto. O evento online, gratuito e acessível contará com mais de 30 especialistas, para descomplicar assuntos da ciência e questionar o determinismo biológico.
Por meio da produção audiovisual, promoção de eventos e palestras, Alex Duarte tem se destacado em defesa das Pessoas com Deficiência (PCD). Sua história inspiradora mostra como as pessoas podem quebrar preconceitos e lutar por uma sociedade mais inclusiva. Confira na entrevista exclusiva.
BAYER JOVENS – Como surgiu o seu interesse de estudar sobre a deficiência intelectual?
ALEX DUARTE – Há 12 anos, eu trabalhava como redator de um jornal impresso em São Luiz Gonzaga (RS). Nunca tinha tido contato com pessoas com deficiência e surgiu uma pauta sobre uma menina com síndrome de Down, a Adriele, que tinha sido aprovada sem cotas no vestibular para nutrição. Eu me senti superdesconfortável para fazer a entrevista, talvez pelo fato de não saber como me comunicar com ela. Antes mesmo de ouvi-la, tive um julgamento inconsciente de que ela não seria capaz. Durante a entrevista, ela inverteu os papéis e, em posição de entrevistadora, ela me perguntou se eu tinha um melhor amigo. Ela contou que só tinha o suporte da família e me perguntou se eu poderia ser o melhor amigo dela. Eu falei “sim”. Aquela situação me tirou da zona de conforto e me colocou num lugar de incômodo.
Como essa experiência evoluiu?
Eu a convidei para sair e nos tornamos amigos. Eu era um jovem de 21 anos e pouco sabia sobre a síndrome de Down. Sou da geração 90, que não teve o privilégio de conviver com a diferença, aliás fomos ensinados a temer a diferença. Na segunda semana de amizade, parei de ver a deficiência. Vi que tínhamos conexão, ideias parecidas, e a nossa convivência começou a ser naturalizada. Eu tinha o sonho de fazer um longa-metragem para cinema, estava me formando em Publicidade e queria transformar produções audiovisuais em ferramentas que pudessem provocar reflexões nas pessoas. Essa era a minha intenção como contador de histórias e, convivendo com a Adriele, tive a ideia de escrever um romance e contar nos cinemas a história de uma protagonista com deficiência.
Quais lições você desenvolveu durante a produção do filme?
Eu quis uma protagonista com síndrome de Down, porque, até então, não via no cinema essa representatividade acontecer. Existem milhares de pessoas como a Adriele no Brasil, e começamos a nos questionar juntos o porquê de uma pessoa com síndrome de Down ainda não estar nas novelas e no cinema, em papéis de destaque. Essa convivência com a Adriele fez cair por terra todas as coisas equivocadas que são ensinadas para nós. Fui ensinado que as pessoas com síndrome de Down aprendiam menos que nós. Passei a ver justamente o contrário, eu sabia que havia desafios cognitivos, mas passei a respeitar e entender o tempo dela e me tornei um aliado.
Como o projeto fluiu?
Eu mudei a minha forma de comunicar, tornei a minha linguagem mais acessível e surgiu o filme Cromossomo 21. Foram oito anos de produção. É um longa-metragem protagonizado pela Adriele e nele é contada a história de uma menina com síndrome de Down que se apaixona por um cara comum. Esse filme estreou nos cinemas do Brasil, foi premiado em Hollywood, abriu o Festival de Cinema de Gramado, foi muito bem recebido pela crítica. A partir dessa experiência, pessoas começaram a me convidar para falar sobre o filme dentro do movimento inclusivo.
Como ocorreu a sua transição de cineasta para educador?
Eu me vi desafiado a aprender mais sobre a questão técnica e acadêmica de inclusão. Virei a minha vida do avesso. Fiz carreira como diretor de cinema, mas, ao mesmo tempo, comecei a me especializar na área. Hoje eu sou especialista em psicopedagogia clínica e em educação inclusiva. Circulei por todos os Estados do Brasil ministrando palestras e, a partir dessa oportunidade, comecei a observar algo que me incomoda muito nas relações familiares, escolares e da sociedade civil: adultos com deficiência intelectual que não tinham autonomia, nem poder de decisão.
Por que isso acontece?
Temos um sistema cultural que não acolhe as pessoas com deficiência, e os pais acabam superprotegendo, por medo de que eles sofram no mundo. Eu vi pessoas muito dependentes dos pais, mas, ao mesmo tempo, via o quanto eles eram capazes de ser autônomos. Testemunhei também algumas famílias fora da curva, que haviam vencido a bolha da superproteção e tinham filhos mais independentes. Foi aí que surgiu o trabalho Expedição 21 há dois anos.
Como esse trabalho foi estruturado?
O Expedição 21 é uma imersão em que levamos pessoas com síndrome de Down para uma casa longe dos pais, por quatro dias, longe de uma sociedade preconceituosa que ainda vê a deficiência e não oportuniza. Na casa, operamos no campo das possibilidades, olhamos as habilidades dos participantes. Criamos diversas atividades e desafios para que os 18 participantes pudessem desenvolver a tomada de decisão e autonomia.
Quais foram os resultados dessa iniciativa?
Foi feito um documentário que mostra os resultados e amplifica a questão da autonomia das pessoas com síndrome de Down. Essa experiência culminou em resultados muito relevantes. Por meio de um questionário preparatório com os pais e participantes, descobrimos quais eram as crenças limitantes, e criamos provas em competições e desafios para a expedição com base nessas crenças. Eles desenvolveram a elaboração de pensamento abstrato, ou seja, conseguiram tomar decisões de cunho emocional.
Tivemos vários doutores e especialistas da educação que visitaram a residência para colaborar, mas em nenhum momento interferimos nas decisões do grupo. Após a expedição, dois participantes foram morar sozinhos. Por conta de mudanças transformadoras na vida dos 18 participantes, o trabalho chamou a atenção do neurocirurgião Dr. Fernando Gomes, e vamos transformar a Expedição 21 em uma pesquisa de cunho científico.
Quais são as perspectivas para essa pesquisa?
Vamos fazer a segunda edição da Expedição com 21 participantes em março de 2021. Estamos em um movimento de idealizar esse trabalho científico, para mostrar e comprovar de que forma a interação em um meio positivo pode ajudar na cognição de uma pessoa com deficiência intelectual e melhorar sua autoestima. Recebemos mais de 500 inscrições de jovens do Brasil, do Uruguai e da Argentina. Vai ser também uma edição diferente, porque, além da síndrome de Down, teremos pessoas com outras deficiências intelectuais participando da expedição.
Como você avalia o papel dos pais nesse contexto de busca por autonomia?
O amor em excesso pode ceifar a autonomia de uma pessoa com deficiência intelectual. Muitos familiares e profissionais da educação ainda sustentam a ideia de que pessoas com síndrome de Down aprendem menos que os outros e não conseguem chegar aos estágios mais elaborados de pensamento. Inconscientemente, estão desempoderando esses sujeitos, fazendo-os acreditar que não são capazes.
Com o Expedição 21, buscamos mostrar que os limites muitas vezes são questões culturais que atribuem à deficiência o caráter da impossibilidade. Fazemos pensar que os entraves são os nossos pensamentos limitantes e que muitas vezes nos levam a agir de maneira superprotetora. Sem perceber, arrancamos o poder das pessoas com deficiência intelectual.
Qual é a importância do empoderamento?
Empoderamento é um conceito que não está registrado no dicionário no Brasil, mas foi estudado e teorizado por Paulo Freire. Empoderar alguém é fazer com que a pessoa tenha consciência de quem é e se encorajar na tomada das próprias decisões. Podemos ser ferramentas transformadoras para incentivar que essa pessoa tome consciência do seu valor. Esse foi o principal fato conquistado no Expedição 21, porque simulamos uma sociedade inclusiva, que autoriza, aposta e acredita na pessoa com deficiência.
De que forma a educação colabora para a autonomia das PCD?
Acredito que demos um passo muito grande com a Lei Brasileira de Inclusão. Antes tínhamos ambientes segregatórios, com “escolas especiais”, que por muitos anos funcionaram, mas hoje devem ser apenas centros de estímulos extraclasse. Pessoas com deficiência devem e têm o direito de estudar em escolas regulares. Acredito que as escolas estão conseguindo criar ambientes inclusivos, com professores capacitados, mas ainda há um longo caminho a percorrer, para que a educação inclusiva aconteça. Essa educação da qual eu falo é voltada para a cidadania global, plena, livre de preconceitos e que reconhece e valoriza as diferenças. Sim. Valorizar as diferenças é a chave. As diferenças sempre existiram. Na educação inclusiva, elas precisam ser reconhecidas e valorizadas, sem preconceito.
Não sendo uma PCD, qual é o seu lugar de fala nesse movimento?
Meu lugar de fala é como ser humano, como estudioso na área da educação e como aliado daqueles que muitas vezes são silenciados. Todos nós temos lugar de fala, desde que saibamos respeitar o lugar de fala de cada um. Como cineasta, escolhi produzir documentários e filmes que colocam a pessoa com deficiência como protagonista, porque elas existem e representam 24% da população brasileira. No mundo, são mais de 1 bilhão de pessoas que se autodeclaram com deficiência. Na posição de educador social, busco encontrar mecanismos e formas inclusivas, para que a sociedade entenda o quanto a inclusão é transformadora, e não caridade. Acho que posso dizer que o maior desafio da minha vida tem sido restaurar essas possibilidades através do empoderamento das pessoas com deficiência, fazendo que cada um se lembre do poder que se esconde no seu interior.